quinta-feira, 25 de junho de 2009

Jantar

Bom, nem todo mundo sabe, mas minha vida é atribuladíssima, sobretudo porque além das aulas de música e noitadas, eu trabalho em dois empregos. Um deles é- uma noite sim e outra não- como "home care"- termo utilizado para identificar aqueles profissionais de saúde que cuidam de pacientes, geralmente idosos, na casa deles. Meu paciente tem 86 anos de idade, leucemia controlada, precisa de transfusões sanguíneas quinzenalmente, faz fisioterapia três vezes na semana e toma por volta de vinte comprimidos por dia. Eu costumo ser muito compreensivo com as necessidades dele- mesmo quando acontece de eu estar dormindo na minha poltrona e ele me chamar quatro vezes, na mesma noite, pra usar o banheiro. Meu paciente é riquíssimo e sei disso desde a primeira vez que o vi. Primeiro que a casa dele é enorme, no metro quadrado mais caro de Brasília- seus vizinhos são empresários, delegados, políticos... Depois que existem fotos espalhadas pela casa inteira das viagens que ele fez com a esposa pelo mundo afora. Ele também é muito lúcido e conversador. Extremamente culto- lê três jornais diferentes por dia e me presenteia a cada plantão com a estante repleta de livros fabulosos- um deleite para minha distração favorita. Todos na casa são muito simpáticos e agradáveis comigo- fora a esposa dele e uma neta que são arrogantes por natureza e não dão confiança a ninguém mesmo. O caso é: às vezes, esse meu emprego me leva a passar por situações que me desconcertam bastante, como essa noite por exemplo. Jantar de aniversário de uma amiga deles- casada com um ex-ministro, que não sei o nome, na casa deste casal. E esse jantar começou pra mim por volta das quatro da tarde, quando recebi uma ligação no meu celular e era a empregada do meu paciente alertando-me sobre o evento e sugerindo que eu me preparasse com uma roupa mais apropriada para a ocasião. Até aí, sem problemas- eu me sinto o homem mais poderoso do universo quando me visto mais social. Coloquei minha melhor camisa de botão, engraxei meu sapato, peguei um blazer emprestado e saí chiquérrimo uma hora antes de começar meu expediente noturno. Passei no salão pra fazer as unhas e troquei a bateria de um relógio que há muito estava encostado mas que combinava bem com meu cinto e deu um ar mais importante à minha "beca". Cheguei na casa de meu paciente, troquei sua roupa, acompanhei-o até a porta e o coloquei dentro do carro para, enquanto dava a volta no veículo, ouvir o seguinte conselho de sua filha mais nova: - André, quando chegar lá, você fica mais distante, um pouco assim ao largo para ele não se sentir constrangido perto dos amigos e poder conversar mais a vontade. Tudo bem, problema nenhum nisso, aliás era mesmo o que eu tencionava fazer. Quando chegamos ao endereço do evento, coloquei meu paciente no sofá e sentei uns três metros de distância- quase em outro ambiente da sala e passei a observar. As pessoas chegavam e me olhavam ali sentado, sozinho. Ora, eu sou branco, olhos verdes, cabelo cortado, barba muito bem feita e, afinal de contas, usava um blazer. Sem exceção, todas as mulheres de pele esticada que entraram naquela sala hoje disseram algo do tipo: "Esse eu não conheço", "Tudo bem? Você cresceu, hein?" ou "Quem é esse menino bonito?". E eu respondia "Sou o enfermeiro do Dr. Fulano". Em seguida, sem exceção, todas as mulheres de pele esticada, olhavam pra frente e seguiam para a recepção. E eu fiquei ali. Sentado. Sozinho. Poderia ser facilmente confundido com um daqueles quadros ou uma daquelas cerâmicas ou uma daquelas esculturas de gosto duvidoso. Um adorno a mais na sala. Eu passaria por alguém da família, mas o rótulo de "praticamente um operário" me excluiu daquele seleto grupo de pessoas importantes. A paella foi servida e eu não comi. Não, até o garçom, muito mais sensível do que qualquer um daqueles que gastaram fortunas em cursos de etiqueta, convidar-me para fazer um prato e comer na cozinha. O momento alto da noite. Fiz amizade com a cozinheira, ri e contei piada, bebi cerveja e vinho (bom pra cara**o) e fumei escondido. Sem problemas, né? Fiquei naquela mansão pouco mais de três horas e, além de trocar mensagens no celular e exercitar minha paciência e diálogo interior, aprendi sobre como tratar os outros. São os ossos do ofício, para não perder o conveniente clichê. Minutos depois, meu paciente manda recado de que quer falar comigo. Ao pé do seu ouvido, eu pergunto se ele precisa de alguma coisa. - Você jantou? - Jantei sim, doutor. - Ah, bom. Aproveita, não é sempre que a gente come paella. E eu lembrei os motivos de não largar esse meu emprego. Porque convivo noite sim, noite não com um ser humano fantástico, porque vejo nele o tipo de homem que eu quero ser, porque recebo dele, todo o carinho que lhe dou- não porque sou ético demais, mas sim grato.

7 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

... coisas que parecem pequenas se tornam grandes depois de um tempo!!!
Já sentia carinho... e minha admiração começa a crescer "olhos verdes"!!!

Não importa disse...

Meu deus, André. Agora vc me comoveu de verdade. Na minha pequena cabeça, ser como vc, ver como vc vê as pessoas é uma coisa extremamente fácil, mas tem gt q se recusa ao óbvio. Agora te admiro mais e tenho mais vontade de te conhcer.

Infelizmente não vou poder ir a sua apresentação, André. Infelizmente mesmo, pq eu tava doida pra te assistir, ainda mais depois desse texto tão humano e bonito. Eu não tinha me atentado ao horário. Eu só saio do estágio às 19:30. Até q horas vai essa apresentação? Tenho chance de te ver se chegar às 20h?

Mesmo q eu não vá, boa sorte e muito sucesso hoje e sempre.
Abração!

Não importa disse...

Qdo tiver postado os vídeos, me passa os links q eu quero ver.
Valeu! Bjo

Unknown disse...

vc é grande.

Não importa disse...

Oi, André! Td bão? Já postou os vídeos? Não se esqueça de me passar os links. Abçs

Vinnie_oliver disse...

Aff... hj mesmo estava eu e o Fábio( primo da kat) debatendo como tem gente q olha o q tem por fora, ou o q tem dentro... da conta bancaria. Mas o q me deixa feliz é q algumas pessoas ficam gratas ao serem tratadas pelo o q realmente são, e assim tbm nos tratam.